Disney: um conto de misoginia

Todos conhecemos a longa história de perpetuação de arquétipos sociais conservadores e misóginos, bem como culturalmente errados, presentes em todos ou quase todos os filmes da Disney, todos sabemos o que esperar de um clássico desta gigantesca multinacional do entretenimento.
O remake de A bela e o monstro vem romper com este paradigma e mudar o que parecia tão imutável como o corpo da Branca de Neve ou o sono da Bela Adormecida; por isso mesmo muito antes de estrear, correu o mundo. Agora estreou e traz consigo uma lufada de ar fresco à Disney empoeirada, mas a questão que se coloca é: será um percalço no caminho ou um ponto de viragem na história da fábrica de princesas? Se for esse o caso, seria um óptimo presente para celebrar o 80° aniversário da Branca de Neve e os sete anões.
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A bela e o monstro (1991)
Mas porque rompe este filme com tudo a que a Disney nos habituou, porque é que ganha um lugar numa estante revolucionária na história da indústria do entretenimento?
Todos os clássicos da Disney nos oferecem uma representação misógina da mulher,  num contexto de organizações sociais muito  conservadoras. Para mais, a Disney brinda-nos com a costumeira representação física exclusivamente caucasiana; quando tal não sucede, apesar do diferente tom de pele são mantidos traços fisionómicos e padrões de beleza ocidentais.
Ora,  A bela e o monstro, de 1991 não é excepção; pelo contrário, trata-se de um dos expoentes máximos de misóginia nos filmes da Disney, já que a relação entre a Bela e o seu príncipe encantado é abusiva, pautada pela violência e pela agressão. O que mudou então?

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A bela e o monstro (2017)
A Bela do remake controla a intriga, ao contrário do que acontece na versão de 1991, é ela quem decide tomar o lugar do pai na prisão e o obriga a voltar para a aldeia, e uma vez cativa, a tentativa de fuga é constante; é muito mais reactiva às agressões do monstro que são menores e menos frequentes. As diferenças na personagem do Monstro extraordinárias nas duas versões e importantes para compreender esta mudança de paradigma: em 1991 o Monstro é mais animalesco, anda  sobre quatro patas, é impulsivo e violento; na versão deste ano o Monstro é muito mais humano, conhecemos o seu passado familiar e como foi maltratado pelo pai, sendo, ainda assim, mais calmo e ponderado.
Temos, então, por um lado uma Bela  independente, emancipada, que controla a acção e não uma Bela que é consumida e arrastada pela acção sem nada fazer, e por outro um Monstro que é mais humano e bondoso, não só em termos miméticos mas também em termos  psicológicos, que não é mau nem agressivo, apenas temperamental ou com “mau feitio”, como referem repetidamente os objectos do castelo. 
Um dos momentos  mais importantes do filme é a conversa entre a Bela e o Monstro depois do baile, quando este pergunta à figura feminina se ela é feliz ali com ele; na versão de 1991 ela responde apenas “Sim”; no remake a resposta é bem diferente, “Não, como é que alguém pode ser feliz sem ser livre?”. 
Porém, não é só na representação da mulher que este filme se torna único e diferente dos restantes clássicos da Disney; mas também na diversidade de representações sociais, sexuais e culturais.
LeFou, o fiel companheiro de Gastón, é homossexual e ao longo do filme torna-se clara a sua paixão pelo amigo; para mais, no baile final o seu par é um indivíduo do sexo masculino. Na batalha final entre as pessoas da aldeia e os objectos animados, três homens são vestidos de mulher pelo armário e ainda que dois se sintam desagradados e desconfortáveis, um deles assume a sua identificação com a indumentária.

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Le Fou (2017)

A diversidade cultural, em detrimento de uma exclusividade de personagens caucasianas, também é notória, com três personagens representadas por actores negros — Gugu Mbatha-Ray é Plumette; Audra Mcdonald dá vida a Madame Garderobe e Ray Fearon é Père Robert. No entnato, não  é só a escolha destes actores que se torna relevante, mas também a escolha destas personagens, pois Madame Garderobe é cantora de ópera e Père Robert é padre, ocupando ambos um lugar de destaque na sociedade da época retratada, não só pelas suas funções mas também pelo respeito e admiração que granjeiam. No caso de Père Robert, a situação ainda é mais evidente porque a sua personagem encarna o livreiro da versão de 1991 e no início do remake há uma conversa entre ele e Bela em que se desvenda ser ele um dos únicos homens que lê na aldeia; ou seja, esta figura é a única referência de conhecimento que a Bela tem.

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Madame Garderobe (2017)

O que quero dizer com tudo isto, não é que A bela e o monstro resolve todos os problemas de conservadorismo social que a Disney promoveu e perpetuou ao longo de quase um século de existência. Trata-se, porém, sem dúvida, de o início de algo novo que pode vir a tornar o aniversário da Branca de Neve, 80 anos depois, especial e único.

Post by Margarida Botelho

Comments

  1. Gostei muito do post até porque é sempre bom haver estas resenhas culturais cinematográficas. Também vi o filme assim que saiu e sendo fã da Disney acho que poderá haver aqui excelentes temas a debater.
    Síndromes de Estocolmo à parte, o filme A Bela e o Monstro é baseado num conto popular do século XVIII. O que acontece é que a Disney adaptou um conto tradicional no século XX. Vai existir obviamente um contraste maior entre os direitos de ambos os sexos até porque os movimentos sufragistas começavam agora a despertar, século XVIII. Não acho que a Disney seja assim tão misógina, i.e, quanto eu vejo um filme de época - infelizmente - estou preparada para ver o papel da mulher completamente diferente do que é nos dias de hoje. Contextualmente e temporalmente a Disney fez um óptimo trabalho. Falando da época dourada da Disney, o exemplo da Branca de Neve, o papel da mulher também é reduzido mas estamos a adaptar um conto dos irmãos Grimm, não posso esperar muita igualdade de género. De facto, a Disney tem vindo inclusive e ao longo dos anos a tornar as suas adaptações menos coerentes historicamente e consequentemente a mulher tem ganhado um papel mais igualitário: veja-se Aladdin, Pocahontas, A Princesa e o Sapo, Entrelaçados, Frozen... Bela e o Monstro de 2017 vem mais uma vez demonstrar como a Disney se está a focar em questões sociais ao passo da precisão histórica. Em relação a LeFou não vi nada que a Disney já não tivesse feito com cartoons do Pateta. Houve tanta polémica por algo que já tinha sido feito muita décadas antes em animação Walt Disney.
    Em suma, o live-action é de louvar no papel mais activo de Belle e na criação de um exemplo feminino forte mas não acho que a Disney alguma vez tenha - no caso dos Clássicos, não falo dos cartoons - sido misógina. Se o foi abre a discussão se todos os filmes de época são misóginos. Por exemplo, é a Guerra dos Tronos (ponto de vista de época e fantástico) misógina?
    Patrícia Cândido, 52119

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    1. Obrigada pelo teu comentário Patrícia. Percebo o teu ponto de vista, mas a misoginia nos filmes da Disney é gritante mesmo que a contextualização histórica o justifique; o problema está na população maioritariamente alvo nestes filmes, as crianças, porque as representações que vêem neste filme definem a imagem que concebem da sociedade e é isso que torna Game of Thrones um caso diferente, já que a população alvo é mais velha e portanto, por um lado menos volátil às representações que vêem e por outro mais informados e preparados para o conteúdo ao qual estarão expostos.
      O que quero dizer é que o impacto das representações sociais que a Disney perpetua têm um impacto concreto na organização social das gerações vindouras, pelo que tem responsabilidades que para mim fazem da correcção histórica algo de menor importância que representações sociais que promovam a liberdade e a igualdade.
      Claro que isto tem mais que ver com uma opinião pessoal das responsabilidades sociais de grandes empresas para com as populações ou do que achamos ser mais importante para a sociedade e para o indivíduo, do que propriamente com uma resposta correcta ou errada.

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    2. Eu creio, contudo, que o problema deste filme/conto não se prende por questões etárias. Eu não acho que se deva proteger as crianças nesse prisma mas sim dar um conjunto de informações prévias sobre nomeadamente de História e questões sociais. Já é conhecido o problema da "desviolentação" dos mitos e histórias infantis. A Disney, tem contudo, e apesar da precisão história, pontuado os seus filmes com personagens femininas fortes e determinadas. No caso da Belle de 91, sempre disse que não queria casar com o Gaston, a Ariel de 86 sempre foi contra o poder do pai. A Pocahontas decidiu ficar com John Smith ao invés do seu prometido, entre outras.
      O problema com este filme/conto, foi algo que sempre achei estranho, é o facto de ela se apaixonar pelo monstro. 1 - Síndrome de Estocolmo, quer dizer ele raptou-a. 2-Bestialismo. Roça um bocado a franja do esquisito.
      Mas é um conto do século XVIII, eu percebo onde era preciso chegar e acho que a Disney o fez muito bem dando dimensão às personagens. Ou seja, não creio que a Disney seja misógina. A quantidade de programas feministas para além dos Clássicos que emitem é surpreendente.

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  2. Viva, Margarida e Patrícia, grata pela vossa colaboração para o blogue. Estamos a discutir o papel de uma empresa com tendências imperialistas, materializadas num impacto à escala global; uma corporação já acusada de representações de teor racista e sexista (normalmente, um mal nunca vem só, nestas áreas). Fico feliz por a Margarida sentir que esta nova adaptação de um clássico da literatura popular (que originalmente nem sequer foi concebida para crianças, sublinhe-se) marca uma viragem nas políticas de género e raça da companhia. Concordo com a Patrícia ao sublinhar que já noutros filmes (penso em 'Entangled' e 'Frozen' — os títulos deviam vir em itálico!) as políticas de identidade de género conservadores são subvertidas.

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  3. Gostei muito do teu post, Margarida. Compreendo o ponto de vista da Patrícia, também.
    Para comentar este post, vou ter que me remeter a uma recoleção pessoal: a minha mãe (Professora de História), antes que eu visse a Pocahontas, explicou-me a violência da colonização. No entanto, a primeira vez que vi a Bela e o Monstro foi...no cinema, no dia em que estreou há umas semanas atrás. A minha mãe diz que não teve influência nisto mas o meu pai assumiu que não queria que eu visse filme. Confrontei-o, há pouco tempo com essa situação: "Primeiro, Maria, as louças não cantam. Eu vi a Branca de Neve contigo e expliquei-me bem, creio eu. Agora, explicar-te, a ti, filha de uma mulher licenciada e de um pai com o 12°ano, as violências do Gastón e do Monstro...Não. Nenhum deles prestava. Por isso, combinei com a tua avó e comprámos a Anastasia. Era menos tétrico. A tua avó odiou o Monstro."
    Em suma...eles viram o filme. Eu é que não. Só vi a versão de 1991 com 22 anos. No entanto, li o conto dos Irmãos Grimm que dá base à Branca de Neve com cerca de 10 anos. Parece pouco compreensível ou estritamente emocional. Provavelmente é e foi. Mas, a verdade, é que o público alvo dos filmes da Disney são as crianças. Não será mais enriquecedor existirem as duas versões? As louças também não cantam, como diria o meu pai. ;)

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  4. Gostei muito deste post e do filme!! Não pude deixar de ir ver ao cinema quando saiu pois sempre fui fã dos filmes da Disney. Fiquei bastante surpreendida (pela positiva) em relação a este remake. Desde a banda sonora, aos atores, como ao cenário em sim, fez-me lembrar os meus tempos de criança. Achei muito bem a introdução/mudança de certos aspetos, nomeadamente tal como disses-te, o facto de a Bela aparecer como sendo uma mulher mais firme e forte do que na história inicial e do monstro mostrar um lado mais humano e menos agressivo.
    O facto de colocarem uma personagem homossexual tambem foi muito bem pensado porque atualmente as pessoas já não tendem a esconder como antigamente.
    Este remake, apesar de fiel á historia inicial adotou outras caracteristicas que achei de facto fundamentais e bem conseguidas.

    Inês Pires, nº52357

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