America's Next Drag Superstar!

Proponho fazer uma comparação entre dois textos, um documentário e um reality show, que retratam a comunidade de drag queens nos EUA. Relacionar estes dois objetos é um bom exemplo para ilustrar o modelo dialético de resistência e apropriação de Peterson e Anand ("The Production of Culture Perspective"), e explorar o papel das indústrias da cultura na construção de identidades.




Paris Is Burning (1990), um filme de Jennie Livingston, documenta a vida da comunidade de drag queens em Nova Iorque nos anos 80. Neste filme documental são expostas as difíceis condições de vida da comunidade. À margem da sociedade, os homens que vemos no filme são triplamente segregados: em primeiro lugar devido a questões de raça, uma vez que a maior parte são latino e afro-americanos; em segundo lugar, porque a maioria são gays (alguns transgénero); e finalmente, por serem drag queens. Devido à segregação, muitos dependem da prostituição como principal fonte de rendimento. A toxicodependência é outro grande problema, uma vez que o consumo de drogas se tornou uma forma de socialização dentro do grupo. A isto, podemos  juntar a proliferação de doenças sexualmente transmissíveis, em particular VIH/SIDA, que nos anos 1980 paira sobre a comunidade como uma implacável sentença de morte.  A violência é uma constante nas suas vidas (em todas as suas formas, física e verbal), acabando muitas vezes em homicídio. Para mais, o filme retrata ainda o ostracismo familiar.  Acompanhamos alguns rapazes mais novos a serem introduzidos em gangues de drag queens chamados Houses, liderados por House Mothers (House LaBeija, House Ninja, entre outras, de acordo com o nome da fundadora), que servem de substituto para as suas famílias originais e que os socializam dentro da comunidade de drag queens. Assim, o filme faz o retrato de uma comunidade fortemente segregada e problemática.



Duas décadas mais tarde, a famosa drag queen Rupaul cria um reality show em colaboração com a Logo Tv, um canal queer americano, que nos mostra um mundo de drag queens radicalmente diferente. Doze drag queens competem para ganhar o titulo de "America's Next Drag Superstar", além de um estoque vitalício de cosméticos e um prémio em dinheiro. 


Muitas cores, purpurinas e lantejoulas iluminam o ecrã. A batida das músicas de dance-pop dá ritmo ao programa. O sonho da drag queen americana é afinal possível: se trabalharem arduamente ao longo dos desafios semanais, nos quais têm de cantar, dançar, desfilar, representar e costurar, poderão conquistar o cobiçado lugar de rainha das rainhas.
O que aconteceu às drag queens de Paris is Burning? O que aconteceu à prostituição? E às drogas? Em alguns momentos, o espetador fica a conhecer as  dificuldades da vida de uma drag queen. Mas o resto é glitter.



Em vários momentos o programa pretende ser um estandarte de orgulho queer, e embora de alguma maneira o seja, é também preciso reconhecer que este objeto está sujeito às regras  das indústrias da cultura e por isso deve também ser avaliado dentro da perspetiva da produção cultural.



Paris is Burning ilustra o  segundo e o terceiro ponto da dialética de resistência e apropriação: a drag queen, no contexto da sociedade de consumo, nasce da reconfiguração de padrões de consumo fora daquilo a que se chama a "moda". Assim, a drag queen nasce de um novo padrão de consumo, em que um estilo feminino é recombinado e estilizado num corpo masculino, criando uma nova expressão de "autenticidade". Os seguidores deste novo padrão de consumo são estigmatizados pela sociedade dominante, pois desafiam a heteronormatividade, rejeitando a sua rígida dualidade masculino/feminino. Surgiu assim entre as drag queens a necessidade de se unirem em comunidades que consolidavam este novo padrão de consumo e que por isso desafiavam a autoridade. (*1: texto original no final da postagem)

Em RuPaul's Drag Race vemos o sexto ponto (e o simultaneamente, o primeiro) em ação. Ao mediatizar a identidade drag, o programa converte revolta em mero estilo. Os símbolos que representam as drag queens são sanitizados e vendidos aos vários seguidores que querem fazer parte da resistência sem se comprometer com o seu potencial subversivo. (*2 texto original no final da postagem)

Nas duas décadas que separam os dois objetos, muito parece ter mudado. Terão as drag queens saído dos becos escuros de East Village para brilhar na televisão a cabo? Desligadas as câmaras, voltarão outra vez para as ruas escuras e para os bares noturnos? Sabemos que o estigma contra este tipo de grupos marginais continua aceso (basta pensar na vitória política dos conservadores nos EUA). A mudança parece ser apenas cosmética. A indústria sanitizou a imagem marginal da drag queen (ela canta e dança, agora livre de drogas e doenças) e comercializa-a, juntamente com as marcas de cosméticos, perucas, jóias e roupa que patrocinam o programa. RuPaul representa a drag queen bem-sucedida, o modelo a seguir, replicando a figura de  House Mother.

O programa serve também como plataforma de televendas para a sua anfitriã, RuPaul, que promove os seus produtos ao longo dos episódios, tais como a sua linha de sapatos, os seus livros, os seus novos álbuns de música e os respetivos vídeos, os seus outros programas televisivos e as marcas que representa. Qual Ouroboros, RuPaul é a drag queen que eleva a sua marginalidade para o mainstream.


*1
 Ponto 2 e 3 da dialética de resistência e apropriação
2. Individuals pick and choose among the goods on offer to construct an "authentic" expression of themselves. Most strive to be in fashion, but some recombine popular products into patterns that are quite different from the styles being promoted by the dominant society.
3. Stigmatized as "different", these people seek out like-minded rebels and consolidate a distinctive set of cultural choices (music, dress, behaviour, drugs, argot) that constitutes individual and group identity, providing a badge of diference from others and resistente against authority...


*2
 Ponto 5 e 6 da dialética de resistência e apropriação
5.The reaction of authorities, and notoriety provided by media attention, attract large numbers of diffusely disaffected youths who emulate the superficial style of resistance without committing themselves to the politics and dangerous actions that signaled group affiliation at the outset.
6. The industries co-opts and denudes the resistance of any symbolic force, converting revolt into mere style. the sanitized symbols are then mass marketed back to the many followers who want to buy into the form of the resistance without committing to its subversive potencial.


Biografia de RuPaul
Nascido em 1960 em San Diego, Califórnia, aos 15 anos de idade muda-se para Atlanta, Georgia, onde estuda artes performativas e inicia a sua carreira como cineasta, ator, e músico, enquanto dançava em clubes noturnos.
Muda-se para Nova Iorque nos anos 1980, onde começa a sua carreira como drag queen. No final da década, fica conhecido no meio underground como "Queen of New York".
Nos anos 1990, RuPaul ganha notoriedade internacional ao lançar o seu álbum Supermodel of the World (1993). Um dueto com Elton John atribui-lhe maior visibilidade. Em 1994, a marca de cosmética canadiana MAC lança a sua primeira campanha publicitária e escolhe RuPaul para representante, lançando-o como a primeira drag queen supermodelo do mundo.
RuPaul lança a sua autobiografia no mesmo ano e torna-se apresentador do seu primeiro programa de televisão, o talk show The RuPaul Show, na VH1.
Em 2009, cria RuPaul's Drag Race, ganhando um Grammy em 2016. 

Comments

  1. Grata pelo excelente post, David, e pela interessante polémica aqui apresentada. De facto, como definir os limites entre apropriação para efeitos de 'show business' e um real interesse em conferir visibilidade a identidades e modos de vida distintos dos modelos hegemónicos promovidos pelos meios de comunicação social, e, em particular, no caso que nos interessa estudar, pelo discurso publicitário. São questões polémicas que por certo não têm apenas uma resposta. Esperemos que os seus colegas se disponham a alimentar a discussão.

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  2. Saudações colega. Antes de mais, parabéns pela excelente comparação que foi feita. Infelizmente ainda não tive oportunidade de ver o filme Paris is Burning (1990), no entanto enquanto espetador assíduo da série RuPaul´s Drag Race (RPDR), não quis deixar de dar a minha opinião.
    Apesar de todo o ideal de RPDR, da competição pela desejada coroa através dos desafios semanais e pela procura da vencedora do programa, há realmente momentos ao longo dos episódios em que as drag queens partilham momentos da sua esfera privada e percebemos que afinal não é assim tão fácil como parece ao primeiro olhar – momentos esses que são o untucked e enquanto se maquilham antes de entrarem em palco. Claro que, a montante, não podemos deixar de pensar que se trata tudo de um produto das indústrias da cultura no que toca ao entretimento, mas apesar de toda a magia que cobre e engana o espetador comum, durante esses momentos de partilha são revelados problemas as suas identidades e os seus modos de vida relativamente á droga, ou à luta constante que é conseguirem-se afirmar neste mundo em que a hegemonia branca e heterossexual encara em a homossexualidade ainda, lamentavelmente, com maus olhos e como afirmaste desafiam a heteronormatividade; em adição o programa permite a participação de concorrentes de várias raças como brancas, negras e latinas. Mas lá está, o conceito de RPDR não é mostrar as problemáticas da prostituição, nem das drogas, esse não é o seu foco, consequentemente como um produto das indústrias da cultura o programa cria uma ilusão que podemos associar ao American Dream.
    Concordo com a tua apresentação das ideias e entendo onde queres chegar com esta polémica que é gerada pela representação que é feita, mas como nas humanidades não há respostas certas, apenas interpretações distintas, este assunto torna-se difícil de debater e responder até certo ponto porque só nos é transmitido, pelos meios de comunicação social., aquilo que é considerado correto e conseguir distinguir os limites entre a ficção e a realidade já é algo que não cabe questionar, mas felizmente conseguimos ver que as coisas estão a mudar.

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